Governança e sucessão nas empresas familiares da Serra Gaúcha

Nas empresas familiares, tão vitais para a economia da Serra Gaúcha, existem desafios e dilemas pouco conhecidos. São questões relacionadas à família, à propriedade e ao negócio que, muitas vezes, por receio ou desconhecimento, deixam de ser discutidas no âmbito familiar. No longo prazo, ignorar esses dilemas pode trazer prejuízos à continuidade da empresa. Para evidenciar esses desafios e preocupações, o IDEF (Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar) realizou, em duas etapas, a pesquisa Retrato das Empresas Familiares da Serra Gaúcha. Em um primeiro momento foi feito um estudo quantitativo por meio de um questionário online. Na etapa seguinte foram coletadas informações em grupos focais com famílias empresárias da região. Nesta entrevista, originalmente publicada na revista Noi, a fundadora do IDEF, Hana Witt, destaca os principais resultados obtidos nesta pesquisa.

A pesquisa Retrato das Empresas Familiares da Serra Gaúcha mostrou a realidade da governança familiar e os desafios da sucessão. Na segunda etapa o estudo se propôs a entender mais profundamente os dilemas das famílias empresárias. Por que é importante entender esses dilemas?
Porque no momento em que as famílias param para refletir sobre o que as incomoda elas passam a olhar para os seus dilemas de uma forma mais organizada. Dilemas são as decisões que a famíla precisa tomar sobre diferentes assuntos. São questões como: vamos crescer, ampliar ou vender a empresa? Coloco um líder familiar para continuar a gestão ou busco profissionais externos? Qual dos meus filhos será o melhor sucessor? Permaneço no comando ou me aposento? Essas são algumas das preocupações que passam na cabeça dos fundadores e dos familiares. Quando se entende esses dilemas, é possível organizá-los e buscar uma solução.

Clique na imagem para ver a íntegra da entrevista publicada na Revista Noi

Esses dilemas estão relacionados a quais aspectos?
São dilemas relacionados aos três contextos da empresa familiar: a família, a propriedade e o negócio. São decisões a serem tomadas nessas três esferas que pertubam o dia a dia das famílias empresárias e podem paralisar ações importantes que afetam os resultados do negócio e o relacionamento familiar.

Quais as preocupações mais frequentes em relação ao contexto da família?
Preocupações em como manter a coesão, harmonia e a preservação dos vínculos familiares. Preocupações como, por exemplo, a necessidade de definir um sucessor. Isso recai muito sobre a família quando se questiona qual dos filhos vai assumir essa posição. Também há o dilema sobre a dependência de um único líder, já que sempre há o risco de perda abrupta do fundador, sem que haja um plano de sucessão. Outra preocupação muito evidente foi em relação à comunicação e ao compartilhamento das informações, uma vez que os fundadores costumam ser centralizadores. Famílias que excluem membros do circuito de informações ficam mais suscetíveis a desentendimentos, intrigas e desconfiança.

E no que se refere ao contexto da propriedade, quais os principais dilemas das famílias empresárias?
Os temas relacionados à propriedade geram efeitos diretos nas relações entre sócios e acionistas, gestores ou não do negócio, pela influência na forma de administrar os bens adquiridos ao longo do tempo. Todos compreendem que o patrimônio familiar não se perpetua por si próprio. Porém, são muitas as histórias de famílias que, apesar de gerir adequadamente seus negócios, não fazem o mesmo com o patrimônio familiar, mesmo que seja superior ao da empresa. Em muitos casos, o desafio de preservá-lo é considerado tão grande quanto construí-lo. Há uma preocupação muito grande em relação à gestão da riqueza, distribuição de dividendos, reinvestimentos e planejamento orçamentário. Também aparecem preocupações relacionadas ao patrimônio diante dos riscos e das perdas – como no caso de falecimento de um dos sócios. Outro assunto de interesse foi o regime de casamento: com as novas organizações familiares, torna-se necessário renovar o entendimento das leis que protegem ou expõe o patrimônio familiar. Decisões relativas à remuneração e alinhamento de interesses e objetivos de familiares, acionistas e gestores também foram pontos de destaque.

Metodologia aplicada pelo IDEF considera as empresas familiares a partir de três círculos: família, empresa e propriedade

É comum a expressão “pai rico, filho nobre e neto pobre” quando o assunto é empresa familiar. Existe uma preocupação das famílias em relação à preservação do padrão de vida estabelecido pela primeira geração da empresa?
Sim. As famílias percebem que precisam saber disciplinar o padrão de consumo para preservar e manter do patrimônio construído ao longo do tempo. E eles se questionam: como seguir tendo esse padrão de vida que tenho hoje quando meu pai falecer, quando meus filhos crescerem? Será que teremos condições de manter o que nós tivemos? Gestão do patrimônio é um assunto que precisa ser entendido por todos os membros da família.

Além dos contextos da família e da propriedade há o contexto do negócio. Quais os principais dilemas mapeados nessa esfera?
Há uma grande preocupação em relação à gestão, ao crescimento sustentável dos negócios, à ampliação e ao planejamento de futuro. A falta de alinhamento entre os sócios também foi apontada como um ponto de atenção, além da ausência de critérios claros no processo de definição dos sucessores. Existe, ainda, uma preocupação muito forte com a manutenção do legado da marca, que representa muito na comunidade em que a empresa está inserida. Se não houver uma boa gestão, seja por profissionais familiares ou executivos externos, certamente haverá um impacto grande na empresa.

Qual a situação da Serra Gaúcha, hoje, no que se refere à adoção de um planejamento sucessório nas empresas familiares?
Aqui na região temos empresas relativamente jovens, não temos empresas centenárias. Portanto ainda temos pouca experiência em processos de sucessão. A pesquisa nos mostra que 52% das empresas ainda estão sendo comandadas pelo fundador; 48%, por sua vez, já têm a segunda geração compartilhando a gestão. Dessas 48%, metade já fez um processo de sucessão natural. Vai acontecendo na medida em que vai avançando a idade do fundador e o sucessor se sente preparado para assumir a gestão.

Pesquisa revelou que 48% das empresas familiares da Serra Gaúcha já compartilham a gestão com a segunda geração

Esses dados acompanham a tendência das empresas familiares brasileiras?
Sim, a realidade das empresas da Serra Gaúcha em relação ao planejamento sucessório é muito semelhante à realidade das grandes empresas brasileiras. As pesquisas sobre as empresas familiares brasileiras de grande porte revelam que o processo de sucessão é robusto em apenas 11% delas. Por um processo robusto a gente entende aquele que tem um planejamento estratégico definido para a perpetuação do negócio. Os dados mostram que 54% das empresas brasileiras não têm um plano de sucessão em vigor.

Por que investir em um bom planejamento sucessório?
Porque ele vai levar a empresa a diminuir possíveis conflitos entre os envolvidos no processo e vai fazer com que as pessoas se preparem de forma adequada. Tanto o sucessor quanto o sucedido precisam de preparo. O sucedido, por exemplo, precisa aprender um novo papel que não é mais o de comando, mas de apoio e, muitas vezes, conselheiro. O planejamento faz com que a transição seja mais harmônica, reduzindo conflitos e rupturas. Uma mudança abrupta impacta nos negócios porque muda as rotas de comando, de decisão, de definição de caminho da empresa.

Quem deve se envolver na definição desse planejamento?
É muito importante que toda a família esteja presente. Os dilemas não pertencem apenas ao fundador, mas são dos filhos, da esposa, dos sócios. As decisões precisam ser compartilhadas, observando, é claro, os limites de envolvimento de cada um em cada, seus papéis, direitos e deveres. Não é que toda a família vai se envolver no negócio, mas ela vai se envolver em algumas decisões que pertencem à família mas que afetam o negócio. Alinhar as expectativas e necessidades dos envolvidos é muito importante nesse momento.

Por que muitas empresas não falam sobre sucessão?
Porque deixar o comando dos negócios não é simples, exige tempo, planejamento e coragem. O sucedido precisa entender o seu novo papel e se adequar a uma nova estrutura da empresa. Falar de sucessão é pensar no encerramento de uma etapa, de um ciclo de vida.

Como colocar em prática o processo de planejamento sucessório para assegurar a manutenção do legado e a longevidade da empresa?
Existem modelos que podem auxiliar nessa organização: são as boas práticas de governança familiar, em que a empresa passa a se organizar criando novas estruturas organizacionais como conselhos familiares, consultivos e comitês. Formar e desenvolver continuamente sócios, familiares e executivos, que atuam ou não na gestão, é uma premissa para estruturar a Governança Familiar. É necessário estabelecer processos de sucessão e caminhar para profissionalização do negócio de forma sadia e organizada, sem as interrupções abruptas que prejudicam a família, a propriedade e o negócio

Para finalizar, qual o principal desafio quando o tema é o futuro das empresas familiares?
É a evolução de um comportamento de família proprietária para um novo comportamento: de família empresária. Para fazer essa mudança, é preciso compreender a importância dos três ambientes – família, propriedade e negócio – e lidar com novos papéis, responsabilidades, direitos e deveres. É importante desenvolver um engajamento maior da família com os planos da empresa alinhando propósitos de todos os envolvidos.

Entrevista originalmente publicada na Revista Noi

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