Os desafios da gestão na agricultura familiar

Gabriela Marcon
gabi.marcon@idefamiliar.com.br


A sucessão é um dilema que preocupa as famílias empresárias não apenas da cidade, mas também do interior. Os filhos crescem e começam a tomar suas próprias decisões. No contexto dessas famílias, sejam elas da área urbana ou rural, há uma história e a construção de um legado. “A ideia do meu filho é continuar na propriedade. E a melhor herança que podemos deixar a ele é o estudo, uma boa educação. Estudando, eles ampliam a visão do negócio e pensam em coisas diferentes para agregar valor à propriedade”, diz Simone Motter Uez. Aos 46 anos, ela conta que nasceu, cresceu e começou a ajudar a família desde cedo, assim que conseguiu alcançar as uvas nos parreirais em meio ao cultivo da fruta iniciado pelo bisavô na localidade da Terceira Légua, em Caxias do Sul.

Simone aprendeu a administrar a propriedade com os irmãos e, quando casou, há 21 anos, passou a dividir a gestão com o marido, Vilmar, 52 anos. “Tenho oito irmãos. Todos casaram, criaram asas, saíram daqui. Quando meu pai faleceu, fiquei com a minha mãe tocando a propriedade”, conta ela. Dentre os principais desafios da gestão de uma propriedade rural, o marido de Simone destaca a falta de mão-de-obra qualificada, o preço mínimo da uva vendida às vinícolas e atravessadores inadimplentes. A família se mantém concentrada no cultivo de três variedades de uva (com uma colheita média anual de 80 mil quilos) e frutas cítricas (em especial quatro variedades de bergamota), que têm um ciclo mais longo.

A maior parte da produção é comercializada no Ponto de Safra, programa da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul que existe há 20 anos, onde Vilmar e Simone aproveitam para levar temperos, hortaliças e frutas cultivadas para consumo próprio, como açafrão, gengibre, batata yacon, carambola, jabuticaba e butiá. “Sempre plantamos um pouco a mais porque tem uma boa aceitação pelo consumidor. Assim, vamos diversificando o negócio”, afirma Vilmar. O pai reconhece a importância do filho na continuidade da administração da propriedade, que possui seis hectares de uva e 2 mil pés de citrus. “A gente tem muito ainda pela frente, mas se o Victor não tivesse interesse seria um problema. Aqui na comunidade tem produtor com quase 80 anos de idade trabalhando sozinho porque os filhos não ficaram. Então a falta do sucessor na família rural é um problema”, acrescenta.

EDUCAR PARA SUCEDER

O investimento na educação dos sucessores, para que eles consigam enxergar a agricultura familiar com uma visão estratégica e ajudem a fortalecer o negócio no futuro, teve influência direta no caminho escolhido pelo filho mais velho do casal, Victor Motter Uez. Aos 18 anos, ele está no terceiro semestre da faculdade de Agronomia, na Universidade de Caxias do Sul (UCS). “No começo, achava que não tinha vocação, não pensava em seguir. Depois do segundo ano de Efaserra comecei a ver o nosso potencial e a pensar na hipótese de ficar. Coloquei a mão na massa junto com meus pais, terminei o curso técnico e decidi continuar estudando, sem fugir da área”, relata o jovem.
Na Efaserra – Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha, que também fica na Terceira Légua – Victor concluiu o Curso Técnico em Agropecuária. Através de um projeto pedagógico focado nas propriedades rurais, a escola incentiva os alunos a criarem soluções de fomento à agricultura, promovendo a qualificação profissional concreta e eficaz do jovem da área rural, dando continuidade aos agronegócios familiares e valorizando o legado de seus antepassados. “Meus pais me ensinaram a ter vontade de trabalhar, a ver que aquilo que produzimos dá certo. Muita coisa aprendi em casa, de um jeito simples, depois adquiri mais conhecimento no curso técnico, e agora, na faculdade, estou analisando tudo de forma mais detalhada. Dá para relacionar os dois e isso é o máximo”, reconhece Victor.

Em 2018, a pesquisa “A Mulher na Empresa Familiar”, realizada pelo IDEF com 82 respondentes – entre esposas e filhas de fundadores de empresas familiares da Serra Gaúcha –, inclui um recorte com mães de alunos da Efaserra, sendo todas produtoras rurais de três municípios da região, dentre elas Simone, mãe de Victor. Por meio das respostas desse grupo específico de mulheres foi possível constatar que 89% das propriedades rurais são comandadas pela família. “O objetivo foi observar como estas famílias tratam o processo sucessório, considerando o trabalho pedagógico da escola”, diz a pesquisadora e fundadora do IDEF, Hana Witt. O papel da escola é tão relevante que 66% das mães disseram que os filhos querem permanecer nas propriedades. De acordo com elas, os herdeiros também trazem assuntos financeiros que aprenderam na Efaserra para casa e conversam sobre qual seria a melhor forma de investir no negócio. Em 78% dos casos, as mães falam sobre o futuro da propriedade com seus filhos.

“Antigamente, as famílias tinham a lógica de não fazer muita conta, comprando os insumos que precisavam para produzir. Produzi, deu tanto. Lucrei, então está dando certo. Não lucrei, está dando errado. Era essa a gestão”, resume Victor. Para ele, continuar é uma responsabilidade. “As gerações anteriores administravam o negócio de qualquer jeito e dava certo. Hoje em dia não é mais assim. Temos de ser profissionais na agricultura”, observa. Conforme Hana, “se percebe que a escola influencia não somente os filhos, mas o sistema familiar inteiro”. A pesquisadora complementa que os resultados deste recorte validam a missão que a escola está buscando realizar junto às famílias rurais da região, nos convidando a refletir se na zona urbana temos escolas preocupadas em contribuir com a permanência dos jovens na sucessão de empresas familiares. “Não havendo essa contribuição por parte das escolas, a responsabilidade de continuidade da gestão familiar nos negócios recai totalmente na família, em especial nas mães”.

Na questão de recursos, caso seja necessário buscar, a família Motter Uez encontra suporte por meio de linhas de financiamento da cooperativa Sicredi, considerada por Vilmar o “braço forte” do pequeno agricultor. Eles contam, ainda, com assessorias técnicas de instituições públicas como Emater e Embrapa, além de participarem do programa Juntos para Competir do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-RS), que desenvolve as principais cadeias produtivas do Rio Grande do Sul através de ações de formação e capacitação profissional para melhorar a qualidade dos produtos e agregar valor à produção agropecuária.

A propriedade da família também já está seguindo as regras do sistema de rastreabilidade de produtos – norma federal que estabelece a obrigatoriedade de informações de origem em todas as frutas e hortaliças. A identificação pode ser feita por meio de etiquetas impressas com caracteres alfanuméricos, código de barras, QR Code ou outro sistema que permita identificar a qualidade dos produtos de forma única, sem equívocos. “Se o produtor não tiver um bom caderno de campo da propriedade, com o histórico de registros de práticas de plantio, amadurecimento e colheita, não vai conseguir gerar rastreabilidade. Nós adotamos práticas corretas, respeitamos limites. E a rastreabilidade na agricultura vem para diferenciar os produtores que são sérios daqueles que só querem vender”, reforça Victor.

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