História, Memória e Aprendizado

Encontro promovido pelo Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar (IDEF) resgata trajetórias de mães e filhas nos negócios de suas famílias

Clique na imagem para ler a matéria originalmente publicada na Revista Noi

Como avó, mãe, esposa ou filha, a mulher tem muito a contribuir com a família empresária. Christine Blondel, autora do livro Las Mujeres y la Empresa Familiar: funciones y evoluciones se refere às mulheres como “Gigantes Invisíveis”. De acordo com ela, as mulheres desempenham diversos papéis, entre eles o de transmissão de valores, modelagem das atitudes dos filhos em relação ao trabalho e à riqueza, e liderança emocional. Com o propósito de compreender, valorizar e destacar o papel das mulheres nas famílias empresárias da Serra Gaúcha (RS), o Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar realizou, no início deste ano, a pesquisa “A Mulher na Empresa Familiar”.

A fundadora do IDEF, Hana Witt, entrevistou mães e herdeiras como Maria Beatriz Dal Pont, que contou sua história no encontro intitulado “Mães e Filhas nas Empresas Familiares”, realizado pelo IDEF no mês de abril, em parceria com a Amada Cozinha Café & Cucina. A proprietária do Bistrô, Maria Beatriz Dal Pont, cresceu em meio às funções da empresa da família, que tinha na figura conciliadora da matriarca, a avó Anna Rech Dal Pont, o grande alicerce. Neta do fundador do Pastifício Caxiense, antes de trabalhar no negócio familiar, Maria Beatriz seguiu o coração, que vibrava pelo magistério. Posteriormente, dedicou-se à gastronomia, sendo hoje a única sommelier de azeites do Rio Grande do Sul. Dentre tantas histórias, memórias e aprendizados, Maria Beatriz destaca: “Somos a soma de nossos antepassados”.

Nem todos os herdeiros de empresas familiares têm o propósito de vida alinhado aos negócios da família. Assim foi com Maria Beatriz Dal Pont, 64 anos, que, antes de se envolver intensamente na empresa fundada pelo avô Martino Dal Pont em Caxias do Sul, seguiu uma extensa e sólida carreira na área da Educação. Ainda na adolescência, seu desejo profissional passava longe de trabalhar em meio aos clássicos biscoitos e massas fabricados no Pastifício Caxiense. “Meu pai me colocou no escritório para carimbar as etiquetas que fechavam os pacotes. Eu quase morria (risos) e falava para ele que não queria fazer aquilo. Ele me dizia que a gente tinha que começar ‘de baixo’. Aí me colocou no setor do varejo, mas foi uma confusão e eu nem posso dizer que saí da empresa, porque na verdade, naquela época, eu nem cheguei a entrar nela”, conta, em tom descontraído.

Maria Beatriz optou pelo magistério, que fazia seu coração vibrar. Com condições de estudar desde a infância em excelentes escolas como o Colégio Sacré Coeur de Marie, entusiasmada com os professores, dando aulas imaginárias e com acesso aos livros (já que tinha uma biblioteca dentro de casa), não tinha dúvidas a respeito de qual profissão seguir. Depois de formada, iniciou a carreira como professora, em 1975, passando pela rede estadual, rede particular e por cursinhos, até ser chamada para substituir uma professora da Universidade de Caxias do Sul que estava indo para Portugal fazer Mestrado. “Eu não me enxergava fazendo outra coisa. Comecei a lecionar na UCS em 1978 e, um ano depois, já estava na pró-reitoria de Extensão. Eu amava tudo aquilo”, recorda.

AS MEMÓRIAS DO PASTIFÍCIO

“Nós somos a soma de nossos antepassados”. Com esta frase, tranquila ao “remexer” nas lembranças, expondo suas vivências e referências do passado, Maria Beatriz começou o bate-papo com as mulheres que participaram do encontro “Mães e Filhas nas Empresas Familiares” contando sobre sua infância em meio às atividades da fábrica da família. “O pastifício foi construído ao redor da casa dos meus avós. Figueiras e jasmineiros foram preservados e minha vó plantava milho em uma das paredes da fábrica. Eu vivia lá, brincando no meio das coisas”, lembra. Nas palavras dela, a avó Anna Rech Dal Pont era o espelho da fábrica. “Ela cuidava de tudo. Era diretora da empresa, conhecia todos os empregados pelo nome, passava por lá todas as manhãs.

Depois do almoço, à tarde, ela fazia crochê sentada no varejo da fábrica e sabia exatamente quanto tinha entrado de dinheiro no caixa. Estava sempre alerta. À noite, fazia a contabilidade. Quando eu me tornei adulta percebi que era a minha avó (uma mulher), quem tinha a cabeça mais avançada. Ela tocava o negócio, juntamente com os filhos”. Até a avó viver, em 1980, Maria Beatriz revela que “era tudo uma maravilha”, já que além de acompanhar muito bem a administração do negócio ao lado dos filhos, a matriarca era uma figura conciliadora de conflitos. “Quando ela faleceu também se foi o nosso alicerce, porque ninguém assumiu o papel que ela exercia, e as desavenças entre o meu pai, meus dois tios e meus primos começaram a influenciar no negócio”.

A crise familiar se intensificou em 1985, quando um incêndio no moinho queimou praticamente tudo, restando apenas os silos. A família viu-se diante de uma verdadeira fortuna de registros de trigo para moer, sem ter o moinho. Naquela época, o trigo e a farinha eram concessões do governo, sendo que, para moer trigo, era preciso comprar registros, que davam direito à tonelagens. Maria Beatriz lembra que o pai estava doente e tinha passagem comprada para fazer uma cirurgia em São Paulo justamente um dia depois do incêndio. O nível de estresse era alto, pois não havia acordo sobre o que fazer. Uma ala da família queria reconstruir o moinho, outra queria vender os registros e se concentrar no pastifício e a terceira ficou em cima do muro. Com os pais e primos em desacerto, a empresa foi enfraquecendo. A parte da família que queria investir num novo moinho ganhou força, o que acabou prejudicando o pleno funcionamento da empresa, que, durante oito anos, não passou por nenhum processo de modernização.

Neste período, Maria Beatriz, então com 36 anos de idade, pediu licença da universidade para ajudar o pai nas negociações. “Me senti no dever de ajudar o meu pai, mas nunca houve diálogo entre ele e os meus tios, e nem com os primos sobre o futuro da administração da empresa. A sucessão nunca foi discutida porque se entendia que os pais ainda iriam continuar no comando por um bom tempo. E os filhos, que já eram adultos, foram entrando no negócio sem uma avaliação de competência, de habilidade, em posições subalternas, não muito impactantes”. Maria Beatriz reconhece que sua tentativa de auxiliar o pai e a família nas questões do negócio fracassou. A partir daquele momento, na década de 90, a empresa estava estagnada. “Hoje eu percebo que a fragilidade de uma empresa se instala quando a atenção e as energias não estão mais concentradas nela, mas nas relações que a sustentam. A questão da sucessão é difícil porque requer clareza por parte dos fundadores. Clareza que nem todos têm”, avalia. Depois de ser admitida formalmente no pastifício, de acompanhar o pai em reuniões com clientes, o pedido de concordata veio em 1996 e, dois anos depois, a solução foi apelar para a falência. “Durante todo esse processo complicado e doloroso para todos, meu pai já estava apagando como uma lâmpada. Esperei ele morrer para protocolar o pedido de falência. Encontramos um investidor, entregamos o negócio, ele assumiu os funcionários e as marcas dos produtos até que tudo fosse a leilão”.

NA AMADA COZINHA

Superados os problemas financeiros e emocionais, Maria Beatriz reinventou-se. A paixão pela culinária, mais do que nunca, passou a fazer parte de seus planos de vida. Durante os seis anos em que morou fora de Caxias, dirigiu faculdades e cursos de gastronomia em São Paulo e no Rio de Janeiro e foi para a Itália se especializar em azeites de oliva, sendo hoje a única sommelier de azeites do Rio Grande do Sul. Com tanto conhecimento e entusiasmo (Maria Beatriz foi idealizadora do projeto que deu origem à renomada Escola de Gastronomia UCS-ICIF, de Flores da Cunha), hoje ela se considera uma aliada da filha na Amada Cozinha – espaço gastronômico comandado por Carolina Dal Pont Branchi, nutricionista e chef de cozinha. De tudo o que viveu, a orientação da sommelier aos herdeiros é clara: os filhos não devem entrar no negócio da família por emoção, assumindo um compromisso e uma responsabilidade que nem sempre podem suportar. “Entretanto, do ponto de vista técnico, é fundamental que os herdeiros se deem conta da parte legal do negócio”, acrescenta. O pastifício marcou a história de Caxias do Sul. Ainda que não exista mais, está presente no coração de Maria Beatriz e fixou-se na memória de várias gerações de caxienses. Talvez seu maior legado esteja naquele delicioso cheiro de biscoito que impregnava o ar nos arredores da fábrica, no bairro São Pelegrino.

Texto de Gabriela Marcon publicado originalmente na Revista Noi

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