52% das filhas de fundadores de empresas familiares de Caxias do Sul e região querem ser sucessoras dos pais e 79% delas têm seu propósito profissional alinhado ao negócio da família. É o que mostra a pesquisa “A Mulher na Empresa Familiar”, realizada entre fevereiro e abril, pelo IDEF. Em contrapartida, 72% não possuem um plano de carreira estruturado para que ocorra o processo de sucessão
Pesquisas mundiais sobre mulheres na gestão de empresas familiares evidenciam a naturalidade com que elas assumem cargos estratégicos. Na Serra gaúcha não é diferente. Em 2017, o Instituto de Desenvolvimento da Empresa Familiar realizou um estudo que, dentre outros dados gerais sobre famílias empresárias de cinco municípios da região, apontou que 62% das entrevistadas têm mulheres em cargos de gestão, muitas delas já assumindo os negócios como sucessoras de seus pais, inclusive.
Neste ano, o instituto concluiu outra pesquisa, desta vez específica sobre A Mulher na Empresa Familiar para entender a participação delas nos temas das famílias empresárias da região, despertando para a importância de suas funções na construção da governança familiar e do processo sucessório. “A pesquisa resgatou a importância das mulheres nos papéis de mães, esposas e filhas para a estrutura familiar e para a perpetuação do negócio”, explica a pesquisadora e fundadora do IDEF, Hana Witt, especialista em Governança Familiar.
De fevereiro a abril, por meio de questionário online e grupos focais, a pesquisa ouviu 82 mulheres, entre filhas e esposas de fundadores, de Caxias do Sul, Farroupilha, Bento Gonçalves, Flores da Cunha e Carlos Barbosa. No caso das herdeiras, o estudo revela que 52% das entrevistadas têm a intenção de assumir o negócio dos pais, 73% delas trabalham nas empresas familiares há mais de oito anos e 79% consideram que essa ocupação está alinhada ao seu propósito profissional, como é o caso de Grasiela Tesser, 34 anos, que já na pré-adolescência começou a se envolver na empresa do pai, Nelço Tesser.
Inspiração no pai
Grasiela lembra que quando tinha 13 anos aproveitou as férias escolares não para brincar ou descansar, mas para cobrir as férias da telefonista da empresa. Das 8h às 18h, durante 30 dias, lá estava ela no comando das ligações da NL Informática, de Caxias do Sul. “Eu sempre quis trabalhar na empresa do meu pai, desde que me conheço por gente. Então já tenho uma identificação forte com o negócio. Nunca fui forçada a estar aqui. Foi uma escolha em fazer aquilo que eu realmente gostava. Mas ele me dizia que antes de entrar na empresa eu tinha que passar pela experiência de trabalhar em outro lugar. E foi o que eu fiz”, conta.
Aos 19 anos, depois de ter trabalhado em outro lugar, Grasiela assumiu a área Comercial e de Marketing da NL. De lá para cá, já se passaram 15 anos de comprometimento com o negócio hoje administrado pelo pai (a mãe trabalhou na empresa durante 18 anos) e por um casal de sócios, que não têm filhos e nem vínculo com a família dela. Como a irmã de Grasiela nunca teve o desejo de trabalhar no negócio familiar, ela é a única sucessora natural, apesar de ainda não haver, dentro da empresa, um planejamento estruturado nesse sentido. “De maneira informal existe o entendimento de que estamos nos encaminhando pra isso e há um ajuste de papéis dos profissionais”, diz.
Admiradora da trajetória do pai, revela que sempre foi “grudada nele”, acompanhando seus movimentos. “Ele tem uma história inspiradora, é o mais velho dos nove irmãos, passou pelas dificuldades de uma família grande e construiu uma empresa. Ele é meu guia, é com quem eu converso e troco ideias, ainda que às vezes a gente discorde em algumas coisas, principalmente por lidar com avanços da tecnologia que a minha geração consegue assimilar melhor que a dele. Mas meu pai é uma pessoa que faz tudo com dedicação e resultado. Por onde ele passa deixa uma marca, e isso pra mim é relevante e serve de inspiração”, reforça.
Os desafios das herdeiras
O maior desafio de uma herdeira está justamente em descobrir seu verdadeiro propósito e suas expectativas profissionais, não se deixando dominar pelas emoções nem pelos papéis que possam ser impostos pela família no âmbito da empresa. “Mesmo que seus pais não a vejam no comando dos negócios, a filha precisa decidir se deseja lutar por seu espaço. Nesses casos, o diálogo familiar e os acordos, algumas vezes incluindo os irmãos, são essenciais para que ela ocupe a função que realmente deseja, sem exclusões incoerentes”, afirma Hana.
Por outro lado, algumas filhas assumem o negócio da família pelo companheirismo e cuidado que têm com seus pais, e pela responsabilidade com o legado, mas com o passar do tempo se percebem distantes de seu propósito pessoal ou de suas verdadeiras habilidades profissionais.
Após três anos atuando na empresa do pai, Mariana Bertuol, 32 anos, decidiu mudar a trajetória considerada natural para seu futuro e trilhar outros caminhos. Graduada em Administração e herdeira da Meber Metais, de Bento Gonçalves, antes de trabalhar no negócio familiar teve outras experiências profissionais na área de marketing em empresas de Porto Alegre. “Em 2014 meu pai sinalizou que estava com uma necessidade de um projeto específico na área de marketing da indústria e me convidou para trabalhar lá”, conta.
Recentemente, saiu da corporação, por questões pessoais. “Conversei muito sobre essa mudança com minha família, até porque consegui dar uma boa organizada no marketing, inclusive capacitando pessoas. Claro que sinto em sair. Gostava do meu trabalho e havia uma expectativa de que eu ficasse”, diz.
Deixar o negócio da família para trás e seguir o seu sonho não foi uma decisão fácil. “Foi um processo de autoconhecimento. Se não tivesse trabalhado na empresa do meu pai nunca saberia como teria sido. Toda essa experiência me ajudou a definir, a resolver o que, de fato, eu queria para a minha vida. Tenho a sorte de ter um pai flexível, que apoiou a minha decisão por mais que ele não concordasse, o que é uma benção, um privilégio, já que isso não acontece com todas as filhas. Ele queria que eu fizesse o que me fazia feliz. Não adiantava ficar se o meu desejo é fazer outra coisa”.
Assim como Grasiela e Mariana, o levantamento mostra que 51% das herdeiras tiveram outra experiência profissional antes de entrar para a empresa familiar, um percentual tímido quando comparado em âmbito nacional. Análises em grandes empresas brasileiras revelam que 73% dos sucessores atuaram em outros lugares antes de trabalharem com a família, uma prática recomendada pelos especialistas em sucessão. Além disso, apesar da maioria das filhas entrevistadas (52%) demonstrarem a intenção de assumir os negócios dos pais, 72% delas afirmam não possuir um plano de carreira estruturado para que ocorra o processo de sucessão.
É para esse contexto que Daniela Betiolo, 42 anos, chama atenção. Ela trabalhou durante 23 anos na empresa do pai, em Caxias do Sul. A experiência lhe trouxe muitos aprendizados, dentre os quais ela destaca a importância de conversar sobre o processo de sucessão. Para ela, mais do que falar sobre isso, é necessário planejar, definir e esclarecer regras, estabelecendo acordos entre todos os envolvidos: fundadores, esposas, herdeiros, sócios. “É colocar isso em prática. Como vai acontecer? De que maneira? Em que momento? São perguntas que devem fazer parte de uma família que administra um negócio. Este aprendizado eu quero levar para os meus filhos, já que hoje sou esposa de fundador de empresa.”
E pode parecer contraditório numa cultura bastante masculinizada nas empresas da região, mas a pesquisadora destaca que a questão do gênero na empresa familiar fica em segundo plano, já que o contexto é diferente em relação a uma mulher executiva que ocupa um cargo numa empresa que não pertence a sua família. “No negócio familiar, existem vários casos onde a filha é o braço forte do fundador, pois já tem noções e ensinamentos de empreendedorismo de dentro de casa ao seguir os passos do pai. Então prevalece a competência, a confiança e o comportamento alinhado aos valores e princípios do fundador e da empresa”. Nesse sentido, 61% das entrevistadas pelo estudo do IDEF possuem MBA, o que potencializa o desempenho de seus diferentes papéis de forma legítima e responsável.
Reportagem originalmente publicada na Revista Afrodite (clique aqui para ler: CAPA, página 45, página 46 e página 47)